sábado, 9 de julho de 2011

O dia que não nasce feliz.

A greve continuou, mas eu não continuei em greve. Não me mantive no movimento por três razões: Não tenho vocação pra levantar bandeiras sozinha, dependo da boa vontade da minha diretora pra muitas coisas e percebi que não teria o apoio dos alunos. Nunca fui tão levada pelas minhas próprias circunstâncias.  Dada essa justificativa, quero falar sobre a última sexta feira.
A semana de provas bimestrais acabou. Ontem seria minha última aula antes das férias e eu estaria no sexto, no oitavo e no nono ano. Pensei que seria interessante levar uma atividade diferente. Minha primeira idéia foi a música do Caetano, "Terra", mas rapidamente me convenci de que eles não iriam gostar. Olhei os DVDs na estante e peguei "Toy Story" para os pequenos e "Cidade de Deus" para os maiores. No caminho, entretanto, pensei que o mais indicado para os meus alunos seria o documentário "Pro dia nascer feliz".
Assisti a esse filme em 2007, quando ainda não dava aula. Me sensibilizei profundamente com as entrevistas que o diretor João Jardim faz com alunos e professores Brasil afora. Revi várias vezes, em todas saí perplexa e emocionada.
Existem outros dois bons filmes sobre escola, "Entre os muros da escola" e "O dia da saia", ambos franceses. Em outro momento, certamente falarei sobre eles e talvez um dia até os passe para alunos, mas agora é o Brasil que me interessa.
Fui a livraria do Paço Imperial e por 45 reais, adquiri o filme, Entrei no ônibus pra Seropédica certa de que tinha gastado (bastante) dinheiro por uma boa causa. Quando cheguei na escola abracei as professoras de quem sou mais amiga, todas elogiaram o meu novo corte de cabelo e nos sentamos, alegres, para almoçar. Tinha batata frita no cardápio e a sobremesa era goiabada, o feijão estava ótimo. Comemos satisfeitas. A diretora, sentada na cabeceira da mesa, participava da conversa e tudo parecia normal. Surgiu então o aviso: Ontem uma inspetora da secretaria de educação (a secretaria tem inspetores, mas as escolas não) foi a nossa escola averiguar qual a razão para os alunos do turno da tarde, no qual eu dou aula, terem tido notas tão baixas no primeiro bimestre. A tal senhora se dirigiu a sala dos professores e ao pergutá-los a respeito do baixo rendimento dos adolescentes em questão, obteve como resposta que o desinteresse é a causa das notas baixas. Era coerente que a agente educadora, então, ouvisse o outro lado. E foi o que ela fez: Entrou numa turma de primeiro ano do Ensino Médio e os indagou sobre o mesmo assunto. O que eles responderam a ela não poderia ter sido mais verdadeiro. Disseram que não entendem o que o professor fala, que nada do que é ensinado se refere ao mundo deles. A inspetora, então, "sugeriu" a direção da escola que orientasse os professores para serem (ainda) menos formais e deu, como, opção de resolução do problema, (mais) atividades de recuperação. 
Diante disso, durante esse almoço agradável, fomos informados de que deveríamos deixar na escola apenas os alunos que precisassem de nota para que eles fizessem alguma atividade que os levasse a média 5,0. Surpresa, eu disse a diretora, que tinha acabado de comprar o DVD e queria exibi-lo. Acordamos, então, que o exercício de recuperação seria sobre o filme.
Eram poucos os alunos presentes, tanto que juntei o oitavo e o nono ano. O professor de Geografia levou também o segundo ano do Ensino Médio para o auditório e nem assim todas as cadeiras foram preenchidas. Demoramos cerca de quarenta minutos para conseguir colocar o filme porque o técnico de informática da escola acabou de ser dispensado. O governo do estado rompeu o contrato com a empresa de computação. Não temos inspetores, nem téncicos de informática.
Quando começou o filme, notei que a maioria estava atenta. Em um certo momento, uma menina da periferia paulistana é entrevistada. Ela faz parte da oficina de Literatura, organizada por uma jovem professora. Seus poemas, que só escreve quando está triste, são muito bonitos. Um ano depois, a equipe do filme a procura, Seu trabalho é dobrar calças para uma fábrica. Não escreve mais. Me arrepiei com o depoimento como se o estivesse vendo pela primeira vez. Meus alunos, que estavam todos ali, desprotegidos, arrumadinhos, fazendo bagunça, talvez não tenham entendido a gravidade do desperdício humano que estava sendo mostrado. Na Avenida Brasil, bem próxima a entrada de Seropédica, fica a fábrica da Hermes. São muitos os estudantes que deixam a escola e se tornam operários precoces lá. Imaginei minhas menininhas, tão alegres e namoradeiras, dobrando calças. Tive vontade de trancar a porta e nunca deixá-los sair, para que a crueldade do mundo nunca os devore.
Logo em seguida, o filme vai ao Colégio Santa Cruz, escola privada, no Alto de Pinnheiros, em São Paulo. Lá, em 2004, ano das filmagens, já havia catracas eletrônicas. Ninguém usa uniforme. Não há negros. Os conflitos das alunas são sofisticados: Medicina ou Engenharia, Deus e a sociedade. Todos bem tratados e preparados para a crueldade (?) do mundo. Em um momento, uma menina diz que se sente mal por existirem pessoas pobres, mas é sincera e admite que não deixa de ir a sua aula de natação para lutar por ninguém. Depois, outra, fala que para passar de ano precisou da ajuda dos pais e de professores particulares. Estuda, em casa, cinco horas por dia. Penso que um dia eles farão análise para resolver seus conflitos existenciais. Todas farão caridade e permanecerão bonitas. Somos informados, ao final, que uma das entrevistadas, um ano depois, estava cursando Engenharia na USP. É a ordem natural das coisas, quase sempre são eles que mandam.

3 comentários:

  1. É exatamente isso Cecília. Parabéns pelo post, aqueles alunos do Estado e do Município não vão furar essa barreira invisível que existe. Ao pobre e favelado, cabem as piores colocações, independente da escolaridade. Tudo gira em torno das relações pessoais, o preconceito social é o pior de todos. Só não podemos nos render e virar uns daqueles professores que fingem que dão aula. Quando ficamos sabendo que UM ex-aluno furou a barreira, aí temos a certeza de que valeu à pena. Continue assim!

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  2. A dificuldade é imensa. O problema é que temos que lutar em várias frentes. Na sala de aula, pensando em atividades criativas e interessantes que levem em consideração os interesses dos alunos. Na escola, tentando construir alianças com outros professores e sensibilizar a direção para a necessidade de projetos alternativos. Na "grande política" (péssima expressão), onde devemos criticar, questionar e por vezes combater medidas que vão contra o modelo de educação no qual acreditamos.

    E olha que eu nem toquei na questão salarial, hein!

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  3. Oi!! Achei o blog bem interessante :) Não conhecia este filme " O dia da saia". É legal? Vou procurar... Já tinha visto o outro "Entre os muros da escola". Gostei deste filme.

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