domingo, 30 de março de 2014

A faculdade de Filosofia poderia se chamar "Tão longe, tão perto" se fosse um filme. Minha primeira professora tem nome de jovem, usa vestidinho curto, é bonita e fala de Aristóteles como eu falo do Gilberto Braga. Estou achando tudo lindo, mas ao mesmo tempo estranhíssimo. As perguntas que os alunos fazem são muito diferentes, questões que eu não faria. Me sinto uma ignorante total e não deveria ser, depois de uma faculdade de História, meio mestrado, três meias pós graduações latu sens e três anos dando aula de Filosofia para o Ensino Médio, não era para ser assim. Mas o fato é que só sei que nada sei. Platão, Sócrates e Aristóteles são meus mais novos companheiros e eu percebo que muita coisa vem deles. Pretendo descobrir nos próximos dias o que é o bem, a felicidade e um diálogo chamado Fedro. Me aguardem. Essa professora passou a introdução de "2001, uma odisseia no espaço" para falar do nascimento das indagações filosóficas e da cultura com a turma. É sensacional mesmo. Fiquei fascinada. E me lembrei, enquanto ela discutia lá com todo mundo, da referência que "Adeus Lenin" faz a "2001", menção essa que é sim definitiva e muito bem citada. Comentei com a professora depois da aula, mas ela não deu muita atenção. Deve ter achado que era uma observação típica de historiador. Mas não posso mais querer ser historiadora. Vi hoje um edital de mestrado para professores de História e pensei que não é pra mim. Não pode ser pra mim. Não pertenço ao meu passado. Uma bosta sem tamanho. Estou tentando investir nessa nova carreira, mas a verdade é que estudar depois de trabalhar longe o dia inteiro, é difícil. As vezes bate um baita desespero. Tem momentos que as aulas ficam meio cansativas e eu sinto vontade de ir para o corredor tomar um café e dar uma olhada nas pessoas. São essas as horas mais difíceis, em que o IFCS, lateja no meu coração e eu sinto uma baita vontade de chorar. Sexta-feira a noite eu enfrentei a exposição da ditadura que está no CCBB e, voltando pra casa, passei pela rua do Ouvidor. Não resisti, nunca vou, e olhei o IFCS, todo aceso, lindo, meu prédio do coração. Foi arrancado de mim. Tenho que aprender a viver sem ele. As vezes imagino que daqui a uns 20 anos, quando alguns desses grandes homens que me jogaram pedras já estiverem mortos, eu vou ter coragem de entrar lá de novo e não vou mais ser lembrada, mas vou lembrar de todo mundo. Vou ver uma meia dúzia de pessoas que estudaram comigo passando, doutores, professores adjuntos, e vou me debruçar sobre o parapeito do terceiro andar, olhar lá pra baixo e chorar pela despedida que não aconteceu. Não tive tempo de dizer adeus para o que eu mais gostava na minha vida, para o pátio a tarde, para as salas, para a Rádio Saara e para o queijo com banana do café gerenciado por um ex-guerrilheiro que sempre tinha sorrisos e elogios para me oferecer, a quem nada disso que aconteceu comigo jamais vai interessar, a quem essa ofensa toda deve parecer muito pequena. Daria tudo por meu mundo e nada mais.

quarta-feira, 26 de março de 2014

Durante as últimas férias eu li a biografia que o Stefan Zweig escreveu da Maria Antonieta. Me impressionei com muitas situações, mas uma delas não sai da minha cabeça: A indecisão de Luis XVI sobre fugir ou não de Paris quando o cerco apertou. Já tinham perdido Versalhes, Mirabeau já havia morrido e ele continuava a hesitar. Foi quem perdeu a cabeça mais rápido, não é a toa (ok, a princesa de Lamballe foi antes, mas ela era coadjuvante).
Tenho agora 29 anos e o aprendizado da segurança é diário. Há coisas que eu já nasci sabendo, sei perguntar, pedir favor, sorrir, levantar o dedo para dar opinião, escrever, escolher roupas, ouvir e observar. Mas não sei ser confiante. São várias bolas de chumbo que levo acorrentadas aos meus pés. Foi o Felipe Fernando, na 3ª série que quando me tirou no amigo oculto, ao me descrever, disse: "Ela é gorda", comentário que foi corrigido pela Tia Gilda, professora de Matemática com um "gorda não, rechonchuda". Foi também o dia que a Danielle Inácia, minha amiguinha da 5ª F, foi contar para o Fernando, da 7ª D que eu gostava dele e ele olhou pra mim e fez cara de vômito. Foram as inúmeras vezes que eu não fui escolhida para o time titular de queimado das Olimpíadas da escola porque a Fernanda Arcanjo sempre me queimava no queimado. Foi o dia que o Joaquim, professor de Matemática do 2º ano, ensinou matriz e eu achei que estava aprendendo, mas não conseguia resolver os exercícios no tempo que ele estipulava, fiquei com raiva e joguei o lápis no caderno, suspirei, desisti daquela merda e chorei. Nunca mais vi o Felipe Fernando. Ele tinha o cabelo igual ao do Latino e usava um bigodinho. Era ridículo. O Fernando, hoje em dia, é da Opus dei. A professora de Educação Física está igualzinha, eu a vi outro dia na rua. Ela não se lembra de mim, mas eu lembro dela. Quem apanha nunca esquece. E matriz... eu nunca usei e nunca vou usar.
E aí veio a juventude. Foram tantos amores contrariados, tantas tentativas de pertencer a vários lugares ao mesmo tempo...Demorou até que eu conseguisse me sentir forte o suficiente para fazer só o que me cabe. Tenho pensado que não quero ser o Luis XVI e também não quero ser a Maria Antonieta. A minha cabeça não vai ser cortada.

segunda-feira, 24 de março de 2014

Buldogues me despertam ternura. Sinto vontade de cuidar deles, de vê-los dormir e acordar, escolher nomes que combinem com eles, ouvir seus barulhinhos e sentir seus cheirinhos. Minha cachorra é um buldogue. Ela ficou na casa da minha mãe e eu sinto muita saudade de, nos momentos menos esperados, segurá-la no colo e apertá-la. Seu jeito de mexer as patinhas, de esperar como se estivesse em posição de balé e a forma como se espreguiça durante o sono, são apenas algumas das razões que a fazem especial, mas há muitas outras. 

Tive uma professora na faculdade que me despertava ternura. Era Anita Prestes. Já perto de se aposentar, quando me deu aula, pouco se levantava. Dava aula falando de forma clara e num tom agradável as informações que trazia num caderno. Era muito séria e raramente fazia brincadeiras. Toda vez que eu a via sentia um enorme orgulho de estar diante dela, pensava na Olga e a imaginava neném, deixando o campo de concentração. É muito interessante imaginar uma mulher dura como aquela, neném. Anita se referia ao seu pai como "Prestes" e demonstrava um respeito muito grande pela trajetória dele. Me lembro que um dia ela foi dar aula com uns brincos vermelhos, em forma de flor, enormes. Me perguntei de quem ela teria ganhado aquela bijuteria, pois não a imagino comprando a mesma. Ela sempre vestia tons pastéis e casaquinhos. Aquele brinco rompia a dureza e deixava aparente uma possível doçura. Alguns anos depois, tive a oportunidade de entrevistar Anita Prestes para um projeto que trabalhei e, ao contar sobre todos os lugares onde morou, fugindo de Vargas e da ditadura militar, percebi que ela não guarda mágoas. Ela é para o que nasceu. Já escrevi sobre isso aqui, inclusive, como deve ser difícil ser ela. Nesse mesmo projeto, entrevistei Clara Charf, viúva de Mariguella e ela nos contou sobre a festa que foi o dia que Anita, neném, chegou ao Brasil. É bonito imaginar. As recordações da Professora Anita despertam os melhores sentimentos que existem em mim. 

Minha mãe, meu pai, minha irmã e minha avó também me fazem sentir ternura. Alguns amigos, algumas linhas de ônibus, cinemas e lugares onde estudei também, assim como alguns homens do meu passado. 
É ternura demais, acho que preciso endurecer. 

domingo, 23 de março de 2014

Descomemoração

Ontem uma amiga me perguntou se eu pretendo ir a algum dos eventos de "descomemoração" do Golpe de 1964. Achei interessante ser, pela primeira vez, a última a saber sobre essa agenda e essa nova forma de denominar o aniversário de 50 anos da ditadura. Quase um ano e meio depois, posso dizer que me habituei ao ostracismo. É como se eu nunca tivesse pertencido ao grupo de pessoas que frequentam esse tipo de situação. Fiquei pensando que essa expressão diz muito não só sobre a forma de pensar esses eventos, mas também sobre o meu passado.
Decidi então escrever aqui, nesse espaço que abandonei por medo de me expor aos urubus que adoram ser expectadores da minha tragédia, um registro sobre isso:

Eu descomemoro junto com eles
Descomemoro as longas e dolorosas exposições sobre um período escuro da nossa história
Da minha História
Descomemoro o ressentimento
Os perdões não ditos
E o rompimento de todas as trajetórias finalizadas antes da hora
Eu descomemoro a arrogância
A utopia
E o descaso com as circunstâncias
Descomemoro todos os dias os lugares onde não se pode ir mais
Os lugares que poderiam e deveriam ser nobres, mas que se mantém austeros sobre saltos de cristal frágeis
O amor e a sabedoria desperdiçados
Eu descomemoro o silêncio
E as tantas pedras atiradas 
Descomemoro o meu renascimento atravancado
As mãos e compaixões lavadas.
Eu os descomemoro 
E os percebo muito parecidos com aqueles que são descomemorados por eles
Eu me descomemoro 
Mas espero que essa tristeza chegue ao fim.